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Quando o presidente levou o filho para o trabalho durante meses



Essa história é real e aconteceu comigo há muitos anos. Vou mudar os nomes por motivos óbvios.


A sala de reunião da presidência tinha paredes de vidro, parecia uma espécie de aquário. Éramos vistos do lado externo, mas quem estava do lado de dentro também podia olhar para fora. Havia uma cortina, mas ela sempre ficava aberta.


A empresa tinha uma cultura empreendedora, com visão de longo prazo, mas a pressão por resultados imediatos era enorme. Por isso havia um clima de apreensão e ansiedade para a reunião que estava prestes a acontecer. O relógio marcava 9h50 da manhã e o pessoal chegava lentamente. A reunião extraordinária havia sido pedida pelo presidente, sem anunciar previamente a pauta. Em dez minutos as coisas ficariam mais claras.


Sentado na cadeira, eu olhava pela parede transparente. Dava para ver por uma fresta, ao longe, a sala do presidente, que também tinha paredes de vidro. O presidente da empresa estava lá, porém não sentado em sua posição habitual e nem em sua poltrona. Ele estava sentado na lateral de sua mesa. Isso já chamava a atenção, porém tinha algo mais. A cadeira imponente da presidência estava sendo ocupada por um menino, provavelmente de 11 ou 12 anos.


O presidente estava ao lado da criança, acompanhando o que ele escrevia, cotovelos apoiados na mesa, com as duas mãos segurando o queixo, cabeça baixa e atento. De vez em quando ele apontava o dedo para o papel em cima da mesa, olhava para a criança com feição séria e voltava a olhar para baixo. Assim seguiu até o horário da reunião. Foram poucos minutos, mas eu me fixei naquela cena incomum.


No horário exato da reunião o presidente se levanta. Ainda de pé, fala alguma coisa com a criança, sempre com a cara séria e caminha rapidamente para a sala da reunião. Nesse momento, fixei o meu olhar na criança. Vi que o menino pegou a latinha de refrigerante que estava na mesa, pôs o canudo na boca e se recostou na cadeira. Enfim, podia relaxar com a solidão momentânea.


Ao entrar na sala de reunião, já sorrindo, o jovem presidente cumprimenta as pessoas. Sala lotada. Ele está sem paletó, camisa desajeitada dentro da calça e gravata frouxa. Fala que não pode perder tempo, que precisamos decidir rapidamente algumas coisas e que está recebendo pressão dos sócios por resultados. E, com um riso contido de canto de boca, diz que está desde cedo cuidando de algo muito importante.


Ele diz: “trouxe meu filho para ficar comigo hoje. Ele está péssimo na escola. Agora ele vai fazer todos os deveres da escola na minha frente, sentadinho ao meu lado. A mãe não está dando conta. Vai ser assim todos os dias até ele dar jeito. Como pode? Está na melhor escola, tem todo conforto e é inteligente. Ele não sabe o que é a vida”.


Todos estavam surpresos com o “pitch” do presidente, alguns esboçavam um leve sorriso, mas não houve comentários, até porque ninguém sabia como agir.


E ele brincou: “Vai ser assim daqui pra frente. Quem não trouxer resultado vai sentar lá na mesa com meu filho, do lado dele”.


Naquele mesmo dia a tarde, a boataria tomou conta da empresa, com a notícia de que o filho do presidente estava passando o dia ao lado do pai, que fungava em seu cangote para ele fazer o dever de casa e estudar.


Como quem conta um conto aumenta um ponto, a notícia circulou nos corredores recheada de liberdade criativa e percepções pessoais.


“Você sabia que o presidente cancelou um monte de reuniões para ficar em cima do filho?” “O presidente está levando o filho para todas as reuniões”. “Já está sabendo que o presidente vai trazer o filho o mês inteiro para ficar com ele na sala?” “O presidente interrompeu reuniões importantes para atender o filho que o chamou com dúvidas da escola”. “O motorista e o carro da presidência não são mais do presidente não. Agora é para uso do filho”. “O filho é mimado que nem o pai”. “Trazer o filho para o trabalho. Isso não é papel de presidente não”. “Imagina se fosse a gente trazendo o filho pro trabalho”. “Eu não sabia que podia trazer filho para o trabalho”. “Esse negócio de misturar trabalho com vida pessoal não dá certo”.


Aquela foi a primeira vez que o presidente trouxe o filho para o trabalho, colocando-o sentado ao seu lado, por horas e horas. A presença do filho se tornou rotineira durante as semanas seguintes. Certo dia, após dois ou três meses, não me lembro bem, o presidente falou para as pessoas que “o menino estava tomando jeito” e suas vindas para empresa começaram a ficar mais raras, até terminar.


Tudo que ouvi de conversas de corredor naquele tempo era esperado, afinal as pessoas adoram externar suas opiniões acaloradas e especular. Porém duas coisas me chamaram a atenção e me motivaram a contar essa história em detalhes. Foram aprendizados que ficaram enraizados dentro de mim, com forte influência sobre meu comportamento futuro, especialmente no ambiente de trabalho.


A primeira foi ouvir frases do tipo: “Que pai maravilhoso por trazer o filho para cuidar dele” e ““Onde está a mãe desse menino?” A segunda foi me deparar com colegas falando: “É porque ele é homem, imagine o que estariam falando se fosse uma mulher trazendo o filho para o trabalho”.


As expressões acima, ouvidas inúmeras vezes, me fizeram entender que existe uma cultura perversa na sociedade, que pode ser traduzida nas frases a seguir:

1- “Pai levar filho para o trabalho é bacana e nobre”, enquanto “mãe levar filho para o trabalho é sinal de fraqueza, incapacidade e fragilidade”.

2- Se o filho está mal na escola, isso é problema para mãe resolver.

3- A responsabilidade de cuidar dos filhos é mais da mãe do que o pai.


A experiência da história acima, que aconteceu comigo há muitos anos, me fez repensar conceitos e preconceitos que eu tinha em mente. A partir daquela situação, eu passei a ficar mais atento e atuante dentro das organizações que trabalhei.


Passei a olhar “mães no ambiente de trabalho” de maneira diferente. Uma das mais especiais histórias da minha vida eu já contei em artigo publicado recentemente no meu blog e no LinkedIn.

Certamente já surgem sinais no mundo contemporâneo de que mudanças estão em curso em relação aos papéis de pai e mãe na educação dos filhos, bem como pais e mães no ambiente das empresas. Porém, isso não significa que a desigualdade de gênero tenha diminuído substancialmente.


As “Estatísticas de Gênero”, publicadas pelo IBGE em março de 2021, é uma evidência triste que as diferenças sociais e profissionais entre gêneros ainda são gigantes e desalentadoras, ou seja, a evolução ainda é tímida.


O que me fez recordar do episódio, que contei acima, foi assistir um pequeno vídeo no Youtube. Nesse vídeo, a meteorologista do canal norte-americano ABC7, Leslie Lopez, foi surpreendida ao ver o seu filho entrar no meio da transmissão ao vivo. Ela dava as notícias quando o bebê surgiu engatinhando na frente da câmera. O filho agarrou as pernas da mãe. A apresentadora não titubeou, pegou a criança no colo, encarou tudo numa boa e se saiu muito bem diante do imprevisto na frente da câmera.



Lembrei também de uma história de poucos anos atrás, quando a então primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Ardern, levou seu bebê para a Assembleia da ONU.


Ela havia voltado a trabalhar após seis semanas de licença-maternidade, e como ainda estava amamentando, ela viajou para Nova York acompanhada de sua filha. Mas a história, a princípio bacana, tem muitas nuances e por isso é recheada de avaliações diversas, inclusive críticas. A viagem para a ONU foi apenas um acontecimento, no meio de várias outras situações, vivida pela primeira-ministra na busca por conciliar as responsabilidades de “administrar um país” e o “cuidar de um bebê” – sem babá e sem aliança de casamento.


Seu parceiro, Clarke Gayford, que era apresentador de TV, desempenhava o papel de pai cuidador da filha, ficando em casa e recebendo o carimbo de homem e pai moderno. Isso foi notícia em todos os jornais do mundo e não pretendo explorar o caso aqui, mas apenas citá-lo como exemplo de situação que gera muito barulho na sociedade.


Primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinta Ardern – Foto: Carlo Allegri

Obviamente que as histórias acima têm contextos diferentes e não deveriam ser comparadas. Mas me atrevo a compará-las sim, mesmo sendo questionável, considerando a simples premissa que, na essência, são histórias de pessoas cuidando de seus filhos durante o expediente do trabalho.


O segundo caso que citei, aquele da apresentadora com o bebê surgindo na tela, é um exemplo simples de como uma situação inusitada pode ser bem recebida pela maioria das pessoas. Foi uma situação “fofa”. Portanto, é um exemplo que deixa pouca margem para comentários ácidos e conflituosos.


Por outro lado, me sinto tentado a comparar duas histórias: a minha experiência com presidente de empresa levando o filho para o trabalho durante meses e a primeira-ministra carregando a filha bebê nas atividades de trabalho e viagens, sendo uma pessoa publicamente exposta ao escrutínio público.


No primeiro caso, o presidente é visto como o pai bacana que assumiu a responsabilidade, enquanto a mãe (desconhecida) foi questionada. O presidente gerou muito mais referências positivas do que críticas, ganhando elogios e mensagens de exemplo de bom pai.


No segundo caso, a primeira-ministra mãe foi muito criticada publicamente pela sua decisão de conciliar o trabalho com a maternidade, por amamentar a filha nos intervalos das atividades de Chefe de Governo e por ter um parceiro do lar.


Em resumo, ambas são exemplos de histórias reais de pessoas que tentaram conciliar o trabalho com a atenção ao filho, com nuances positivas e negativas.


O meu ponto é simples: as nossas percepções e opiniões mudam por conta do gênero? A sua percepção muda? Qual é a sua avaliação? E se o presidente da empresa fosse uma mulher e ela levasse o filho para o trabalho durante meses? E se a liderança máxima da nação fosse um homem levando o bebê em suas atividades diárias e para dentro das reuniões?



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