Ela olhou para mim, colocou a enxada de lado e sorriu. Eu não resisti e fui falar com ela. Foi assim que conheci a Dona Leocádia e o Chico, seu companheiro canino. Eu estava caminhando em uma estrada de terra batida que cortava grandes arrozais, em alguma localidade entre Santa Maria e Dr. Pedrinho, no interior de Santa Catarina. Ela estava no meio do arrozal.
Foram vinte minutos de prosa com essa mulher agricultora, viúva, simpática, otimista, guerreira, que vive com os filhos em uma pequena casa simples nos fundos de um grande arrozal. Com os pés descalços enfiados na lama, ela me contou a difícil cirurgia que teve que fazer nos pés há anos e como o “pé na lama” tem sido um santo remédio para ela. Também falou sobre cuidar do arrozal, da futura colheita em março, da vida dura na roça e de sua rotina. Sempre com um sorriso gigante no rosto. Só ficou séria quando pedi para fazer uma foto. Me senti diante de uma mulher forte. Me despedi, Dona Leocádia também, ambos desejando que Deus nos proteja. E segui meu caminho. Esse foi um pequeno flagrante de minha experiência como caminhante e peregrino, que vivi recentemente.
Vou deixar o roteiro, distâncias e informações do Caminho no final desse post, bem como algumas fotos ao longo do texto, mas esses são os pontos menos importantes. O mais importante foram os momentos e experiências ao longo do percurso, isso fica dentro da gente, enraizado.
Foram 220 quilômetros caminhando pelo circuito chamado Vale Europeu, no interior do Estado de Santa Catarina. Lugares lindos, rurais, de natureza exuberante, pessoas de bem, fraternas, de paz infinita, tudo isso eu senti. Contudo, no ano que vivo o luto da partida da companheira da minha vida, o que mais me encantou no caminho foram as mulheres.
O acaso me trouxe uma surpresa. Meses atrás eu fechei essa caminhada em grupo com a Suseya Caminhos e Viagens. Na véspera do início do Caminho, eu recebi a informação de que eu iria fazer o caminho somente com mulheres e um casal. O que no início me pareceu um incômodo, se transformou rapidamente em oportunidade. E ficou ainda mais acentuado quando o casal não seguiu com o grupo no final do terceiro dia e eu me tornei o único homem do grupo. Passamos a ser 12 mulheres e eu.
Em uma época que se fala tanto em empoderamento feminino, liberdade e feminismo, eu vivi uma experiência real do que isso significa. Me vi cercado ao longo do Caminho de mulheres casadas, separadas, enamoradas… mulheres de pele branca, de pele preta e todos os belos tons no meio… mulheres de diferentes partes do Brasil, de diferentes sotaques… mulheres sem mimimi, sem medo de mordida de mosquito, que se vestem de forma espartana e sem frescura… mulheres que, em vez de costurarem roupas, costuram as próprias bolhas dos pés… mulheres com grande resistência física, mental e espiritualizadas… mulheres bem resolvidas, maduras (todas entre 54 e 72 anos), autônomas, almas libertas, senhoras de si, independentes e entusiasmadas com a vida… mulheres doces, femininas, bonitas, charmosas, inteligentes, que sabem viver e que se bastam… mulheres felizes com elas próprias, com enorme amor próprio e auto estima.
Ouvir suas histórias pessoais, confidenciadas ao longo dos longos quilômetros do caminho, foram lições de vida para mim. E são histórias e experiências vividas muito diferentes… histórias de superação, de reinvenção, de desapontamentos, de coragem, de conflitos e conquistas pela busca de uma liberdade que nem sempre a sociedade entende.
Todas aquelas mulheres são passarinhos lindos e livres, que não cabem mais em nenhuma gaiola, até porque já deixaram as suas próprias gaiolas há muito tempo.
Quando muitos falam em beleza extrema, o papo das “minhas” mulheres, ao chegarem nas pousadas, era de inchaços, bolhas, calos, unhas caídas e picadas de mosquito… mas no meio dos esparadapos e bandaids, havia espaço para batons e perfumes. Eu tive um intensivão do que é ser mulher de verdade e sinto que caminhei com 12 Mulheres-Maravilha.
O caminho, independentemente de qual seja, sempre ensina muito. Todos fazem o mesmo percurso físico, mas cada um faz um caminho diferente. O chão de terra batida está nos pés, mas a jornada está na cabeça. Eu caminhei por muitos trechos sozinho. E isso acontece naturalmente porque o vigor físico, o ritmo e o interesse pelo que está ao redor variam muito de pessoa para pessoa. Por outro lado, o senso de companheirismo está com a gente o tempo todo, no exercício de escutar, incentivar a companheira, de dividir a garrafa de água e olhar para trás para ver está tudo bem com quem está no final da tropa.
Caminhar sozinho é um estímulo para pensar. As vezes a gente voa, caminhando. Os pensamentos se arrumam, problemas ficam menores, ideias aparecem, a alma se acalma e tomamos decisões de vida.
Aprendi, ao caminhar, que a ansiedade de chegar ao destino vai diminuindo com o tempo. O mais legal é o caminho em si. Então aprendi a não ter pressa… e descobri que o caminho mais curto não é necessariamente o melhor. O importante é o caminho mais prazeroso, observar ao redor, buscar o inesperado como uma oportunidade para ver e descobrir coisas novas, dar “bom dia” para pessoas desconhecidas, conhecer pessoas… ou simplesmente parar ao longo do caminho para ouvir os pássaros ou o som de um riacho nas margens do percurso.
Fazer um caminho desse, onde a gente leva os nossos pertences em uma mochila, é um exercício de desapego.
Ao longo do tempo eu fui descobrindo que eu trouxe coisas demais e que eu poderia passar os dias com muito menos. Se extrapolarmos isso para as nossas vidas, é fácil constatar que sempre carregamos muito mais coisas do que precisamos em nossa “mochila da vida”. Fazer o caminho foi uma experiência de minimalismo.
A experiência ficou ainda mais interessante quando pousamos no Albergue O Peregrino na cidade de Benedito Novo, da família Koprowski.
Em um albergue tudo é compartilhado, lá exercemos de verdade a colaboração, a generosidade, a paciência e o espírito de comunidade. Todos ficam junto o tempo todo.
No albergue conheci mais uma mulher extraordinária: a Margarethe. Foi ela que sonhou, criou e colocou de pé o albergue, com incrível resiliência e capacidade de execução. Junto com seu marido, Egon, eles formam uma especial dupla de anfitriões e contadores de histórias. Ainda conheci o Andres, seu filho, engenheiro florestal e cozinheiro de mão cheia, e a nora: Ana. Eles formam a família Koprowski, hospitaleira e generosa.
Eles ofereceram o jantar para o grupo, como bons anfitriões de peregrinos que recebem os caminhantes em sua casa, dividindo a comida e o espaço da casa. No jantar, Margarethe disse que todos são iguais em sua casa, não importa quem chega, ela nunca pergunta quem é, todos são iguais, comendo a mesma comida, com os mesmos talheres, na mesma mesa e recebendo o mesmo afeto.
Eu andei em lugares como Santa Maria, Ribeirão da Liberdade e muitos outros. Todos parecem ser lugares distantes do Brasil que vemos na TV. São lugares lindos, de gente boa, de “bom dia” e sorrisos gratuitos quando passamos. A história a seguir é um exemplo desses sorrisos gratuitos.
Na passagem pela cidade de Ascurra, colonização italiana, passou na minha frente uma senhorinha pedalando uma bicicleta. Ao longo do caminho na cidade, essa senhorinha apareceu outras vezes no meu caminho, ora me ultrapassando, ora vindo na direção contrária. Eu não resisti. Parecia que os céus estavam me pedindo para eu falar com ela. E falei!
Foi assim que conheci a Dona Lúcia, moradora de Ascurra há 23 anos, dizendo que estava fazendo compras para casa e fazendo exercício físico ao mesmo tempo. Quando ela me perguntou o que eu fazia ali, eu respondi que era caminhante com um grupo de doze mulheres e que estávamos fazendo uma caminhada de mais de 200 quilômetros. Ela abriu um sorriso maroto, acho que não entendeu bem e pensou que eu era maluco.
Falei, então, que eu estava achando bonita a cidade de Ascurra (o que era verdade!). Ela olhou para mim com ironia, demonstrando não acreditar no que eu dizia. E deve ter pensado: “Ascurra bonita? Esse é doido mesmo”.
Desconforto físico, sede, fome, calor, frio, todas essas são sensações naturais que sentimos ao longo de um caminho de longo curso. Nada demais e nada extremado. Mas o corpo pede um breve descanso ou uma recarga de energia em alguns momentos, e as vezes essas paradas para descanso e/ou alimentação se tornam ainda mais especiais, como foi o caso na parada do pastel entre Indaial e Timbó, logo no primeiro dia da caminhada. Foi ali que conheci mais uma mulher incrível: a Dona Marli.
Dona Marli tem uma casa simples de madeira de venda de pastel. Seu delicioso pastel e sorriso aberto já são conhecidos dos peregrinos. Lá ela vive com o filho e a nora, vivendo de seus pasteis caseiros e fartos de recheio, de sua agricultura de subsistência de palmito e a criação de galinhas caipira. A família gira ao redor dela, onde salta aos olhos a dureza da vida e a luta do pão de cada dia. Ela parece possuir um imã anterior, tamanho o seu magnetismo, a simpatia e a sabedoria de suas palavras simples faladas sobre a vida.
Alguns me perguntam por que não valorizo a façanha de caminhar 220 quilômetros, as dores no corpo e os perrengues inevitáveis de uma viagem como essa. A resposta é simples: porque isso não tem nenhuma relevância perante as descobertas e os encantamentos que tive ao longo do caminho, que superaram em muito as dificuldades. E, por isso, acho que todos deveriam se permitir experimentar uma caminhada como essa, da maneira que desejar, sozinho ou em grupo. Garanto que será transformador e não será a primeira, porque a gente termina o caminho querendo fazer novos caminhos.
Obrigado Aline, Delma, Dica, Fátima, Jorgina, Léa, Lucélia, Mamata, Marilde, Simonne, Rosa e Terezita. Vocês são incríveis. Obrigado também a Dona Leocádia, Dona Marli, Dona Lúcia e Margarethe.
Escrevi esse texto ao longo do caminho, em sobras de papel e guardanapos diversos, com uma caneta velha. No penúltimo dia, na cidade de Apiúna, eu finalizei o texto, sentado no café do hotel, na beira da estrada, às 6h30 da manhã.
Eu fiz esse caminho com a Suseya Caminhos e Viagens, sob a liderança de Simonne e Aline, que são mulheres apaixonadas pelos Caminhos, que conseguiram transformar os seus sonhos em um projeto de vida, ao criarem a Suseya. Foi uma experiência fascinante esses dias com elas, impossível de descrever em palavras, só vivendo mesmo. Se você pensa em fazer um caminho, eu recomendo muito que faça com a Suseya.
Contatos Suseya:
instagram Suseya:
instagram Simonne Capeletti: https://www.instagram.com/simonne_capeletti/?hl=pt-br
Vale Europeu – Santa Catarina:
Nosso roteiro (9 dias) com distâncias aproximadas:
De 28/11 a 6/12/2020
dia 1 – Indaial para Timbó – 28km
dia 2 – Timbó para Pomerode – 26km
dia 3 – Pomerode para Rio dos Cedros – 18km
dia 4 – Rio dos Cedros para Benedito Novo – 24km
dia 5 – Benedito Novo para Dr. Pedrinho – 27km
dia 6 – Dr. Pedrinho para Tirolesa K2 Mil – 32km
dia 7 – Tirolesa K2 Mil para Rodeio – 12km
dia 8 – Rodeio para Apiúna – 20km
dia 9 – Apiúna para Indaial – 28 km
Saltando na Tirolesa K2 Mil, em Ipiranga, nos arredores de Rodeio