Eu estava mexendo nas gavetas e armários, separando os objetos pessoais do meu pai, descobrindo coisas que ele guardava a sete chaves e me deparando com “tesouros” escondidos. De repente, encontrei a carteira dele, com cartões e dinheiro dentro. Atrás, no bolsinho plástico transparente, vejo duas pequenas fotos, dele e minha mãe, de algum tempo no passado. Essa foto ilustra esse artigo.
Ao me deparar com as duas fotos 3×4 preto e branco que citei acima, eu fiz uma viagem. Por alguns minutos, eu vi ali a representação de amor e de cumplicidade de duas pessoas que decidiram construir uma vida juntos por mais de 60 anos. Meu pai, naquela carteira velha, ao guardar aquelas duas fotos, registrou o carinho e importância da vida conjunta construída com minha mãe.
Meu pai partiu neste mês, após ficar hospitalizado por 3 semanas em função dos desdobramentos da covid. Tudo foi rápido e surpreendente. Minha mãe reagiu com perplexidade, ficou desorientada, parecia sem chão. Ela não sabia o que pensar e fazer diante da evolução dos fatos e, principalmente, após a partida de meu pai.
Ela passou a falar que seria muito difícil viver sozinha naquela casa, do eminente medo das noites solitárias e não ter mais com quem conversar.
Nos primeiros dias, ela se mostrava muito emocional e falava coisas sem pensar, como por exemplo “Daqui a pouco eu vou embora também”, dando a entender que, sem o meu pai, a vida passou a não fazer mais sentido.
Esperei alguns dias para conversar com a minha mãe. Eu senti que havia necessidade de esperar um melhor momento para explorar alguns pontos, encontrá-la mais permeável para ouvir outros pontos de vista, além de murmúrios e lamentos. Eu buscava abertura para uma conversa longa e reflexiva, sem interrupções ou lampejos de choro, com a esperança de encontrar sua mente mais aberta e flexível.
Certo dia, em um dos seus instantes de diálogo, ao demonstrar mais equilíbrio emocional, eu achei que aquele poderia ser um bom momento de conversa.
Eu olhei para ela e falei: “Mãe, você quer saber realmente o que eu penso?”
Ela parou de falar e me deu uma atenção que não havia me dado desde o dia da partida de meu pai. Aí eu comecei a falar tudo que me veio na cabeça. Acho que fiquei mais de trinta minutos falando sem parar.
“Mãe, finalmente chegou a sua liberdade”.
Ela olhou para mim sem piscar, parecendo não entender muito bem o que eu havia dito. Então eu repeti, emendando com as coisas que jorravam na minha mente.
“Mãe, finalmente chegou a sua liberdade. Eu passei a vida toda ouvindo você falar que você vivia uma vida muito dura, tendo que acordar cedo todos os dias para cuidar da casa, cuidar da família, cuidar da sua mãe quando ficou doente e dependente, cuidar dos filhos, cuidar do marido, em uma roda viva sem fim de demandas e trabalho doméstico. Você sempre falou que nunca teve tempo para cuidar de você, de fazer o que gosta, de passear, enfim, de aproveitar a vida. Agora o seu marido partiu, os seus filhos estão independentes e com família constituída, com netos e bisnetos, portanto, não existe mais ninguém dependendo de você. Você está completamente livre. Você tem a sua carta de liberdade em mãos, para você fazer o que desejar. Quantas vezes você me falou que gostaria de viajar, de conhecer pessoas novas, de como seria maravilhoso se pudesse ter uma vida menos carregada de afazeres domésticos e livre das atividades pesadas do cotidiano? Chegou esse dia! Você está com 89 anos. Você tem boa saúde física, psicológica e emocional. Você é uma pessoa ativa, faz pilates, fisioterapia e RPG. Você adora conversar e se relacionar. Você lê jornal sem óculos!!! Você não tem restrições alimentares. Você praticamente não toma remédios. Você diz que quase todas as suas amigas morreram. Diz que sobraram poucas amigas, que essas poucas estão comprometidas com suas famílias e teriam pouco tempo para você. E daí? Você tem uma grande oportunidade de fazer novas amizades, até porque você adora conhecer pessoas. Você pode participar de excursões com grupos de idade próxima a você, conhecer lugares diferentes e bacanas, conhecer pessoas novas e fazer atividades que nunca fez”.
Minha mãe olhava para mim ouvindo meu discurso em silêncio. Eu não dava tempo para ela me interromper.
No entanto, em um vacilo meu, ela disse: “Você sabe que um dia uma cartomante falou para mim que eu ficaria viúva e que me casaria de novo?”
Eu olhei para ela e sorri. Apenas pensei: acho que ela está começando a entender o espírito dessa conversa.
Não dei tempo para novas interrupções e continuei:
“Mãe, a decisão do que você vai fazer com a sua vida e como você vai viver daqui pra frente é exclusivamente sua. Ela é decisão da sua mente. Você pode viver a vida como uma noite eternamente escura, se lamentando de um passado que não vai mais voltar e em uma melancolia interminável. Ou viver a vida como um nascer do sol diário, vendo em cada novo dia uma oportunidade para aproveitar e cuidar do seu bem-estar, de participar de novas experiências, de celebrar a vida e fazer novas escolhas. Você tem uma casa própria. Você tem uma situação financeira simples, mas equilibrada e independente. Como já disse antes, você tem boa saúde física, psicológica e emocional. Você tem tudo para ter uma vida saudável. Em vez de se lamentar pela partida do seu companheiro, do meu pai querido, você deveria celebrar! Celebrar tudo que ele viveu ao longo de quase 87 anos. Se orgulhar de tudo que vocês construíram juntos, de tudo que proporcionaram para a família e entes queridos, por sermos uma família íntegra, unida e harmoniosa. Celebrar os netos que te admiram, pelos bisnetos que já nasceram e estão crescendo maravilhosamente lindos e saudáveis. Celebrar o patrimônio que conquistaram, a vida digna e equilibrada, com filhos formados e com linda vida profissional. Celebrar as belas histórias que você tem para contar, fruto de uma união maravilhosa, de admiração e respeito mútuo. É isso que você tem que celebrar, agradecer e se orgulhar. E não se lamentar. Mas a escolha é sua. Será sempre sua. E essa escolha é diária, desde que você acorda até quando você deita a noite. Quer saber o que eu penso?? Acho que você não deve lamentar a partida dele. Ele partiu porque chegou o momento. Foi a hora dele ir. Todos nós teremos o nosso momento de partida também. Desculpe se vou ser repetitivo, mas as vezes é importante insistir com as coisas. A forma como você pensa determinará como você quer viver daqui pra frente. O seu estado de espírito está dentro da sua mente. Você pode ficar triste, se desejar. Ou você pode ficar feliz por poder aproveitar a vida que ainda tem nas mãos, vivendo de maneira inesquecível. E, digo mais, você pode estar diante de uma fase única na sua vida, que é fase da tão sonhada liberdade e independência. Você pode fazer o que bem entender com a independência que está agora em suas mãos. Vai atrás do seu sonho, mãe! Vai atrás daquilo que você sempre falou comigo ao longo do tempo. Você ganhou a liberdade”.
Essa não foi uma conversa comum com a minha mãe. Normalmente ela interrompe muito, questiona e gosta de falar. Mas essa conversa foi diferente porque ela ficou ouvindo o tempo todo. Tal comportamento me fez pensar que eu consegui, de alguma forma, tocá-la profundamente e surpreendê-la. Acho que abordei a situação de uma maneira inesperada e apresentei argumentos bem convincentes, que a fizeram absorver alguns pontos importantes, especialmente a questão da liberdade conquistada.
Pensar na liberdade de minha mãe não é um conceito simples. A minha mãe tem dificuldade em usar o controle remoto da TV, não sabe usar o smartphone e muito menos o computador. Ela tem dificuldade de acender o forno do fogão ou usar o micro ondas por conta dos botões no painel.
Meu pai era seu ajudante e salvador em vários desses momentos, e muitos outros. Ela era dependente do meu pai para algumas tarefas do cotidiano, mas sempre se considerou independente. Apesar do contraditório da liberdade, estou convencido de que ela está diante de uma grande oportunidade para aprender muitas coisas que ela não aprendeu até agora.
Ao longo dos dias seguintes da partida do meu pai, nós começamos a mexer nos armários, tentando pensar no que fazer com os objetos pessoais, roupas, as anotações infindáveis de contas pagas e extratos bancários. O mais impactante, obviamente, foi rever as fotos. Encontramos dezenas (ou centenas) de fotos do passado, em preto e branco, envelhecidas, com bordas comidas e amareladas pelo tempo. Foi muito emocionante ver ali, nos papéis corroídos pelo tempo, as conquistas da família, as dificuldades, os sonhos, os fatos e as histórias por trás de cada rosto. Vi fotos dos meus pais jovens. Me permiti imaginar tudo que eles viveram e nos proporcionaram. Senti um sentimento de construção. Ver aquelas fotos foi uma injeção de esperança, uma sensação de conforto, de que valeu a pena, e reforçou dentro de mim o conceito de que o passado merece ser celebrado, e não lamentado por ser algo que não volta mais.
Aquela conversa com minha mãe foi apenas o início de um processo sem fim. Sinto que terei muitas e muitas conversas com ela, será preciso para fazê-la levantar a cabeça e olhar para frente. No entanto, eu estou consciente de que ela precisa viver intensamente o luto, com toda sua dor e esplendor, deixar fluir todos os sentimentos que emergem nesse momento, viver as fases do luto, porém sem se vitimizar e ficar falando nos cantos de que a vida acabou. Ainda não conversei com ela sobre o processo do luto e seus desdobramentos, que a entrada em um novo ciclo de vida dependerá dela percorrer integralmente o ciclo do luto, e encerrá-lo. Essa não será uma conversa fácil, mas provavelmente será a mais importante e tem que acontecer em breve. Eu já escrevi muito no blog sobre luto, mas destaco dois posts no blog que serão a base para a conversa com minha mãe: “A minha experiência com o luto” e “Desapego, escolhas e mudanças“.
Outra conversa importante será sobre futuro. Já tenho iniciado alguns papos falando sobre futuro, mas nada ainda na forma enfática como desejo abordar. Preciso que ela entenda que o futuro dela não será fruto do destino ou do acaso. Seu futuro será construído e conquistado a partir das decisões que ela tomar conscientemente a partir de agora. E, se ela retrucar com o velho obstáculo de que ela não tem mais idade para fazer grandes mudanças, eu serei firme ao falar que não estou falando em grandes mudanças, mas sim nas dezenas de pequenas escolhas que ela faz minuto a minuto, ao longo de cada dia.
A vida que ela tanto almejou e sonhou ao longo de sua existência, será possível a partir das suas atitudes e iniciativas, apenas isso. Portanto, é fundamental que ela tenha consciência de que o futuro está nas mãos dela, na autonomia de fazer escolhas e receber, em troca, a vida que desejar.
Nunca me imaginei falando tudo isso para minha mãe. Tudo está tão claro na minha cabeça. Parece complexo, mas é simples. Ela não sabe ainda, mas com 90 anos a minha mãe está descobrindo a liberdade.