Eu pensei muito se deveria publicar este texto. Fiquei horas sem saber o que fazer. Trata-se de algo muito pessoal, que alguns amigos e familiares poderão não entender.
Há pouco mais de 24 horas, eu vivi a Consagração do Santo Daime.
Eu não sei muito bem o que vivi. É difícil de descrever, mas o que vivenciei foi algo extraordinário, transformador, que permitiu acessar partes de mim que eu não sabia que existiam. Neste artigo, me atrevo a descrever parte do que minha consciência lembra, tentando traduzir em palavras as sensações, os efeitos psicodélicos, o estado meditativo e as viagens espirituais que vivi na Consagração do Santo Daime. Perdão pelo clichê, mas esta foi a viagem mais incrível de minha vida, portanto, tentar descrevê-la é uma ousadia.
Controlei a minha tendência de descrever tudo em detalhes, esmiuçar o ambiente, o local, a cerimônia etc. Faço isso para preservar todos os elementos envolvidos, especialmente as pessoas. Vou me limitar a contar o que eu vivi, individualmente, dentro e fora de mim, porém mais dentro do que fora. Cabe dizer que foi uma experiência prioritariamente de amor. Eu me senti todo tempo acolhido, seguro, com fortes conexões com todo o grupo participante, mesmo tendo vivido alguns momentos de intenso medo.
Não pretendo explicar em detalhes o que é Santo Daime e ayahuasca, apenas fornecer informações básicas para melhor entendimento. Existem toneladas de informação na internet, muitas com abordagem científica, outras sob a perspectiva religiosa e outras mais de múltiplos enfoques. O fato é que Santo Daime carrega um enorme misticismo, repleto de controvérsia e ambivalência, com muita desinformação, julgamento e preconceito. Portanto, não me aventuro a entrar nesta conversa.
Ayahuasca, também conhecido como Santo Daime, é uma bebida feita a partir da infusão de duas plantas amazônicas: o cipó-jagube e o arbusto-chacrona, que após cozimento em água se transformam em um chá, num processo chamado de feitio. A palavra ayahuasca é de origem indígena. Ayahuasca também é chamada de “La Pequena Muerte”. O chá é utilizado há milênios por índios da América do Sul em rituais de extrema religiosidade e somente no século passado surgiram seitas não indígenas que fazem uso da bebida. Atualmente, cultos religiosos como o Santo Daime, Céu de Maria, Porta do Sol e União do Vegetal têm o consumo da bebida como ritual — hábito que é permitido no Brasil pelo Conselho Nacional de Políticas Sobre Droga (CONAD).
O melhor artigo para engenheiros ou descrentes que encontrei na web chama-se “Quais são os perigos da ayahuasca? Entenda”, publicado no site do Hospital Santa Mônica. Apesar do título amedrontador que me desagrada, o artigo tenta fornecer uma análise completa sobre ayahuasca, desde uma visão científica, passando por uma visão religiosa e fornecendo uma visão terapêutica. O artigo é justo e equilibrado, apresentando os efeitos físicos, psicológicos e demais efeitos que o chá oferece.
A minha decisão em consagrar o Santo Daime surgiu na onda de minha jornada de autoconhecimento que tenho vivido nos últimos anos, onde tenho me jogado a novas experiências, especialmente aquelas que me geram desconforto e até medo.
Eu senti que havia chegado o momento de viver o Santo Daime. Certamente não seria algo trivial e fácil para mim, ainda mais para um engenheiro binário que adora ciência. Para viver o Santo Daime, eu precisaria estar completamente aberto, sem vieses, sem restrições ou qualquer barreira interna, preparado mentalmente e psicologicamente. E a oportunidade apareceu!
Importante dizer que passei por uma específica avaliação física e psicológica, feita por profissional médico habilitado, para verificar se eu estava apto para viver a experiência integralmente. Isso foi realizado uma semana antes do dia determinado para a cerimônia. Também cabe dizer que o ritual foi conduzido por pessoas habilitadas e em local controlado.
Chegamos no local ao meio-dia. Eram instalações confortáveis no meio de uma chácara enorme, cercado de floresta, com muito verde, borboletas e araras.
A cerimônia teve início às 13h.
Recebemos uma longa explicação preparatória sobre o processo que iríamos vivenciar, com abertura para perguntas e dúvidas. Ocorreram as apresentações individuais dos participantes do grupo, montamos uma corrente de mãos dadas e fizemos uma pequena oração.
Recebi a minha primeira dose do Santo Daime em um pequeno copinho de vidro. O líquido tinha uma cor marrom escuro. Fui informado que estava recebendo o concentrado mais fraquinho. Voltei para o meu colchonete e relaxei.
A sensação era de paz e tranquilidade. Me sentia seguro. O líquido havia descido amargo pela garganta. Em minutos, eu senti o meu aparelho digestivo reclamar. Comecei a sentir leves cólicas. Os mantras tocavam muito alto e me faziam relaxar mais. Velas acesas. O cheiro de incenso tomava conta do ambiente. Estava começando uma onda.
Em algum momento, não sei afirmar em quanto tempo, eu comecei a ver figuras multicoloridas. Eram padrões completamente simétricos dançando na minha mente, repleto de detalhes, parecendo caleidoscópios espetaculares que tomavam toda a minha visão. De alguma forma, eu tinha consciência do que estava vivendo e queria mais. Me entreguei completamente àquela experiência e as imagens me hipnotizavam.
Fui convidado a tomar a segunda dose. Caminhei em zigue-zague até a pequena mesa tendo o apoio da guia. Voltei para o colchonete e esperei, ainda cercado dos caleidoscópios gigantes. Eu pensei que já estava vivendo algo especial, mas nada comparado ao que ainda estava por vir.
Aos poucos, as imagens simétricas multicoloridas começaram a desaparecer para dar lugar a imagens psicodélicas impossíveis de descrever. A música tocava alto no salão. Era uma mistura de música com sons alucinantes, que amplificavam toda aquela experiência que eu vivia naquele momento. Algo muito mais intenso do que Pink Floyd.
Eu sentia uma sensação de euforia, de transcendência, o que era incrivelmente gostoso. Porém, em alguns instantes, os momentos se transformavam em sensações de pânico, de intenso medo, de estar em um abismo sem fim. Tudo acontecia muito rapidamente. Tudo girava. As imagens e as sensações se alternavam aceleradamente. Isso foi muito assustador e inebriante. Eu senti pavor. Eu abria os olhos, e por poucos segundos eu tinha consciência de onde estava e ao que estava me submetendo. Porém, segundos depois, eu fechava os olhos e continua a minha viagem louca. Estar lúcido de tudo que estava vivendo foi assustador para mim.
Em algum momento, fui “acordado” e convidado para tomar a terceira dose. Eu tive que ser amparado para ficar de pé e ir até o local. Era impossível ficar em pé sozinho ou decidir por qualquer direção. Estava calmo e assustado. Não lembro, mas acho que questionei se deveria tomar uma nova dose. Lembro de segurar o copinho e tomar o líquido amargo. Voltei para o colchonete, sempre amparado e acolhido.
Com esta nova dose, tudo foi se potencializando. Talvez tenha entrado em transe.
Aos poucos comecei a deixar de sentir o meu corpo. Depois de um tempo, eu não tinha mais corpo. Eu era um espírito: leve, imaterial e indescritível. Eu abria os olhos, olhava o telhado acima de mim, mas eu não me mexia. Eu não tinha mais corpo. Eu não tinha mais o que movimentar. Estava acima de tudo.
O local estava inundado de lindos mantras, hinos e orações, mas também tocavam músicas brasileiras e sons instrumentais. Entidades da natureza eram invocadas, lembro disso. Algumas vezes, tudo parecia se harmonizar. Outras vezes soava frenético. Tudo era muito intenso. Os meus sentidos estavam amplificados e aguçados.
Aos poucos, uma sensação de prazer, paz e amor foi ocupando cada vez mais espaço dentro em mim. Eu estava elevado, em alguma dimensão desconhecida e divina.
Eu tenho certeza de que, naquele pequeno intervalo de tempo de poucas horas terrenas em que “vivi” o Santo Daime, eu vivi uma experiência de centenas ou milhares de anos. Como explicar isso? De alguma forma, eu acessei outras vidas e dimensões. O mundo material perdeu o sentido e a relevância. Eu não sentia mais o corpo. Eu não sentia sede ou vontade de fazer xixi. Eu não tinha o que movimentar.
A minha sensação é que eu passava décadas na mesma posição imóvel. Em algum momento, em uma pequena fração de segundo, eu me sentia ligado ao corpo, então eu me movimentava lentamente, as vezes era apenas uma abertura de olhos, ou me reposicionava levemente no colchonete, até ficar em uma nova posição por mais outras décadas. As poucas vezes em que conscientemente eu me movia, era necessário um enorme esforço de minha parte, cada vez maior. Os braços, as pernas, tudo parecia muito pesado… tudo sem importância.
Eu estava vivendo ali uma experiência de meditação avançada e profunda. Na dimensão em que eu me encontrava, o tempo deixou de existir ou fazer sentido.
Lembro que, em determinado instante, eu senti algo na região da garganta, como um pequeno pigarro. Conscientemente pensei em tossir para limpar a garganta. Porém, como eu já estava há muito tempo sem movimentar o meu corpo, eu havia desaprendido de como fazer o meu corpo tossir. Eu tentava e não conseguia. Eu não sabia como. Parecia que eu desconhecia como fazer meu corpo voltar a funcionar.
Fiquei aflito. Senti medo, quase pânico. Neste momento, eu descobri que ainda estava lúcido. Intuitivamente fui tentando movimentar partes do corpo na tentativa de me reconectar novamente. E deu certo! Eu voltei a me reconectar com o corpo e consegui tossir. Aproveitei para mudar de posição no colchonete.
Quando o processo se dirigiu para a fase final, eu ainda estava “em Nárnia”, mas uma parte de mim já tinha mais consciência. As luzes do salão foram sendo acesas lentamente, em um processo de reconexão material. Músicas e hinos magníficos tocavam. Pessoas perto de mim bailavam e giravam, fazendo sombras, num ritual lindo, mágico e transcendental. Já era noite, mas algo dentro de mim não queria voltar para esse mundo.
Ainda com os olhos fechados, conscientemente, fiz uma revisão de minha vida. Pensei em tudo que vivi nestes 62 anos de idade.
Cheguei à conclusão de que os meus últimos anos de vida foram muito mais intensos e significativos do que todas as dezenas de anos anteriores. Este processo começou com a descoberta do câncer da minha amada Regina. Vivemos, então, uma época dourada de ressignificação de vida nos anos seguintes, quando vivenciamos intensamente juntos a experiência do câncer, tudo contado emocionalmente no meu blog. Com a partida da Regina, este processo foi acelerado. Então, Deus colocou a Valéria na minha frente, um anjo que veio do céu, e tudo se potencializou. A minha conexão com a Valéria vem de outros mundos. A minha amada Valéria desperta coisas dentro de mim que ainda me são desconhecidas, revelando “novos Mauros”, aflorando sentimentos, potencialidades e dimensões que eu nunca conseguiria alcançar sozinho. Nada é por acaso! Tudo isso parece uma trama que vai se desenrolando ao longo do tempo, como uma espécie de teia da vida.
Já consciente, eu comecei a sentir um enorme enjoo. Algo queria sair de dentro de mim. Eu vomitei! Foi um alívio. Algo de ruim foi colocado para fora. Foi um processo de purificação. Me fez bem.
O ritual do Santo Daime terminou por volta de meia-noite, ou seja, foi um processo de onze horas de duração.
Durante mais de dez horas eu fiquei sem beber água, sem fazer xixi, estando apenas no meu colchonete, fisicamente… mas mentalmente eu fui para outros mundos, em uma jornada de muitos e muitos anos.
Se eu pudesse descrever resumidamente a minha experiência do Santo Daime em imagens, eu diria que tudo começou como uma montanha-russa cercada de visões psicodélicas, com todos os sentidos aguçados, sendo que, no meu caso, os sentidos da visão e da audição foram intensificados em um nível que eu nunca tinha experimentado antes.
Nessa montanha-russa experimentei euforia e desespero, paz e loucura, amor e medo. Em seguida me senti levado para outra dimensão, para outro mundo, completamente imaterial, com sensações indecifráveis e intensas. Aqui afirmo que vivi um encontro divino, era apenas luz, paz e muito amor. Talvez eu tenha tido um encontro com Deus.
Parte do medo que vivi no processo, provavelmente, foi fruto do meu consciente, aquele ser lógico que quer entender o que está se passando e quer ter controle sobre as coisas. Talvez o medo tenha surgido por não ter me entregue mais plenamente às experiências, por mais que eu tenha me esforçado.
O filme mais próximo que se aproxima do que eu vivi é “Contato”, com a Jodie Foster. Neste filme, a personagem (que é cientista) faz uma viagem incrível em uma máquina (supostamente concebida por seres de outro planeta) com visões psicodélicas e experiências multissensoriais. No final da viagem ela sente uma paz e se eleva espiritualmente. E, o mais incrível, ela vive exatamente o que eu vivi: apesar de sua viagem ter durado apenas alguns segundos, a sensação dela é que ela teve uma experiência de muito, muito, muito tempo.
Alguns podem afirmar para mim que o Santo Daime é apenas um alucinógeno. Talvez alguns digam que vivenciei, somente, um ritual de alucinação coletiva intencionalmente criada. Eu não tenho como contra-argumentar e nem desejo combater tais posicionamentos. Afinal, eu mesmo pensava assim antes de viver esta minha experiência. Para mim, o Santo Daime foi um instrumento que me levou para um estado meditativo profundo, ampliando absurdamente a minha consciência, possibilitando reflexões mais profundas e acessar partes de mim até então inacessíveis e desconhecidas. As alucinações me tiraram de um estado consciente e me levaram para uma percepção alterada da realidade. No meu caso, a ayahuasca foi extremamente terapêutica, ainda mais por ter sido acompanhada por uma cerimônia ritualística intensa, impactante, mas também cuidadosa e amorosa.
Eu passei os últimos anos estudando e explorando filosofia, espiritualidade, doutrinas e outros caminhos holísticos. Eu venho construindo a minha estrada de sabedoria na “minha velocidade”, sem pressa e ansiedade, permitindo me descobrir e procurando me expandir cada vez mais. Nestes meus estudos exploratórios, eu venho aprendendo muito com pensadores, filósofos e gurus sobre o mundo espiritual, chacras e outras dimensões. Muito do que eu venho lendo e aprendendo faz sentido para mim, porém tudo sempre foi muito conceitual e abstrato. Minha mente cartesiana de engenheiro, quase institivamente e em silêncio, sempre questionou se tudo aquilo que aprendi realmente existe ou se aquilo eram viagens muito loucas destes tais gurus.
Apesar da tendência de analisar tudo isso de forma racional, o fato é que vivi uma incrível experiência espiritual. Eu sou testemunha de que o espírito existe e que eu consigo acessá-lo. O espírito existe de verdade! Tudo, absolutamente tudo, fora do espírito é irrelevante e efêmero. O mundo material é um detrator do que realmente é a nossa essência.
Talvez eu tenha vivido aqui apenas uma fração de segundo daquela sensação que os gurus descrevem com uma elevação espiritual, mas ela foi intensa e transformadora.
As pessoas que partiram da vida terrena apenas morreram fisicamente, porém espiritualmente elas estão vivas, em outras dimensões. O que vivemos em nosso mundo físico é transitório e efêmero, ou seja, é apenas um pontinho pequeno em nosso universo espiritual.
Foi a viagem mais profunda que já fiz dentro de mim. Nada do que vivi até agora na vida foi tão forte quanto isso. E, o mais importante, eu saí diferente desta experiência, mudou o entendimento de minha existência. Saí melhor!
Eu estou certo de que virão grandes transformações na minha vida. Sinto que vou ressignificar a minha existência, expandindo tudo que vivi nestes últimos anos.
Obtive respostas para algumas questões existenciais profundas que eu tinha dentro de mim. Ainda continuo com muito mais perguntas do que respostas, porém tenho uma direção mais clara para onde ir e, principalmente, onde quero chegar.
Nota: 90% deste artigo foi escrito durante a madrugada, imediatamente depois que a consagração terminou. Eu ainda estava no local, dentro de uma barraca, ainda parcialmente sob efeito da experiência e do chá. O silêncio era absoluto, as barracas estavam abrigadas em uma instalação no meio da floresta, protegidas e com amplos banheiros e espaço de convivência. O texto foi escrito com caneta e papel, tudo iluminado com a lanterna do celular. Desejei escrever isso ainda com as sensações frescas na mente, sob efeito da paz celestial que eu ainda vivia e sentia. A seguir publico duas imagens daquele momento.