Era 1993, morávamos em Manaus. Eu tinha trinta e pouco anos de idade. Meus filhos tinham sete e cinco anos. Certa vez, resolvi ir ao supermercado com eles, somente nós três. Fiz uma lista de compras e distribuí tarefas entre nós. Bernardo, o mais novo, recebeu a tarefa de escolher e colocar os legumes e as verduras dentro do carrinho. Tadeu ficou com a missão de pegar alguns produtos não perecíveis.
Bernardo começou a escolher os legumes. Colocava a mão em tudo, esfregava, pegava os vegetais e cheirava. Ele pegava um determinado legume e eu dizia a quantidade que ele tinha que selecionar. E assim foi: cenoura, tomate, batata, cebola… uma coisa me chamou a atenção: ele escolhia os legumes mais feios, especialmente os mais deformados e opacos. Achei que era por acaso, mas com o passar do tempo fui vendo que ele agia intencionalmente. Colocava as mãozinhas no meio da bancada, abrindo buracos nas pilhas de legumes a procura dos vegetais mais feinhos.
Em determinado momento, eu não resisti. Falei: — “Bernardo, você tem que escolher os vegetais mais bonitos, lisinhos, com as cores mais fortes e sem defeitos. Por que você está escolhendo os mais feinhos?”
Sem olhar para mim, segurando um chuchu bem deformadinho nas mãos, entretido com a atividade, Bernardo respondeu rapidamente, seguro da resposta: — “Pai, se a gente não levar os mais feinhos, eles vão ficar aqui pra sempre. Ninguém vai querer eles.”
Fiquei surpreso com a resposta inesperada e lógica. Também fiquei sem palavras. Nem respondi.
Tadeu, meu filho mais velho, falou: — “Bernardo, você vai levar uma bronca da mãe.”
Deixei o Bernardo seguir com a sua missão de salvar os legumes inglórios. E passei o resto do tempo no mercado pensando na lição que meu filho me deu. Porém, discretamente, sem Bernardo ver, eu separei alguns legumes de boa qualidade e coloquei escondido no carrinho.
Compramos tudo, inclusive os legumes selecionados por ele e por mim, em pacotes separados. Levei para casa um retrato da sociedade dos legumes.
Eu nunca conversei com o Bernardo sobre isso… e nunca mais levei o Bernardo comigo para comprar legumes. Quando chegamos em casa, segui pensando na experiência do mercado. O episódio era uma clara demonstração que aquele menino tinha uma cabeça diferente. Ali ele já mostrava uma preocupação com os desprovidos e os excluídos. Eram legumes, sim! E se fossem pessoas? Tinha um quê de diversidade naquilo tudo. Acredito que Bernardo nem lembre dessa história. Como já disse, eu nunca contei para ele.
Ahhh… em casa, no dia seguinte à ida ao mercado, lembro que Bernardo pegou um tomate bem feinho e plantou no canteiro da varanda. Morávamos em um apartamento, portanto o canteiro era completamente inadequado. Deu em nada. Provavelmente o pequeno tomate morreu afogado. Bernardo regava o canteiro a todo momento, várias vezes ao dia. Para ele, o tomate precisava de muita água.
No ano seguinte, nos mudamos para os Estados Unidos. Fomos morar nos arredores de New York.
Certa vez, viajamos para Cape Cod com vários amigos queridos para passar o final de semana. Todos latinos, casados e com filhos, em sua maioria da Argentina e Chile. Fomos em vários carros e passeamos a valer. Mas algo aconteceu. Na época, registrei o ocorrido como um episódio estranho, porém depois ficou mais claro.
Cape Cod é uma península localizada no estado de Massachusetts. É um destino popular de veraneio para turistas da costa leste dos Estados Unidos. A região abriga uma baía linda, praias oceânicas, antigos faróis, vilarejos, dunas, enfim, um sonho de lugar. É super aprazível caminhar pelos vilarejos e decks que se debruçam no mar, entrar nas barracas de frutos do mar e bistrôs. E foi isso que fizemos.
Logo que chegamos, ao caminhar por um dos vilarejos, eu comprei um boné, que achei bacana e passei todo o final de semana com ele. No entanto, eu notei que fui sacaneado recorrentemente pelos meus amigos. Eu demorei para sacar o que estava acontecendo. Depois descobri. O meu boné tinha o lindo desenho bordado de um balão com as cores do arco-íris e, portanto, aquele boné não era coisa de homem.
A maioria dos meus amigos eram latinos, portanto, o papo rolava em portunhol. Em determinado momento, Bernardo (o mesmo Bernardo defensor dos tomates e batatas excluídas), ao longo de uma das caminhadas em Cape Cod, se vira para mim e pergunta: “Pai, o que é maricon?”
Nunca contei esse episódio para ninguém, mas aquela experiência foi marcante. Lembro que não fiquei chateado pela sacanagem divertida e insistente dos amigos comigo, e que usei o boné ao longo de todo final de semana para mostrar a minha indiferença com a brincadeira. Porém, confesso, lembro da dor que emergiu dentro de mim no retorno da viagem, quando estava pensativo dirigindo ao longo da estrada, em silêncio, solitário com meus pensamentos, enquanto todos dormiam dentro do carro. A dor que eu sentia era a dor da intimidação. Ao chegar em casa, eu guardei o boné no fundo da gaveta.
Até hoje, quase trinta anos depois, eu ainda tenho o boné comigo. Talvez para lembrar a experiência vivida. Nos últimos anos eu tenho usado o boné regularmente.
Recentemente, aconteceu algo que me provocou profundas reflexões, e continua provocando. Meses atrás, o meu filho Bernardo participou do TedX falando sobre MASCULINIDADE TÓXICA. Na apresentação, ele compartilhou o preconceito que ele próprio vivenciou ao longo de sua infância e adolescência, de machismo e homofobia, ao se assumir um homem gay.
No TED ele abre o coração dando detalhes da experiência vivida de descoberta de sua masculinidade, contando confidências, o seu processo de aprendizado e evolução, e o que vem fazendo para aumentar o debate sobre o tema. Fiquei muito orgulhoso e impactado por tudo que contou.
A narrativa é quase um desabafo, onde ele conta ter vivido em uma espécie de prisão por crescer homossexual, numa cultura de discriminação e imposição de códigos de masculinidade. Ele fala sobre o impacto emocional e mental de sua autoestima e autoconfiança que ele carrega desde a adolescência, que ele só conseguiu verbalizar (e entender) hoje, com trinta anos. Ele conta sobre amigos que deixaram de falar com ele quando souberam que ele era gay, e confidencia também experiências profissionais passadas onde ele foi orientado a não dividir sua vida pessoal por conta de uma liderança intolerante à homossexualidade.
Bernardo entende que qualquer discussão legítima sobre masculinidade tóxica tem que ser menos sobre empatia e mais sobre autocrítica de todo homem em relação à sua saúde mental, bem como um trabalho de evolução contínua (com leitura, estudo e exposição a temas novos).
A surpreendente conclusão é que o grande causador da sua opressão e insegurança era ele mesmo, incorporando elementos da masculinidade tóxica que fizeram parte de toda a sua vida social/pessoal/profissional, e que ele só começou a confrontar quando admitiu que a toxicidade vinha de dentro dele mesmo. Eu nunca havia pensado dessa forma. Ouvi-lo foi esclarecedor e me gerou profunda reflexão, porque todos nós temos isso dentro da gente.
O TED me fez rever a jornada que vivi (e ainda vivo), de aprendizado e construção, da minha identidade como homem. Nesse momento de mergulho interno, eu consegui me autoavaliar e descobrir que ainda carrego dentro de mim um alto nível de toxicidade. Senti vergonha de mim mesmo ao pensar em comportamentos e atitudes que já tive, e ainda tenho. Mais do que nunca estou aprendendo a deixar fluir minhas emoções e vulnerabilidades. Tem sido libertador.
Nos últimos dois anos eu tenho feito uma mudança radical na minha vida. Estou muito mais sensível e emotivo, me sinto um ser humano mais poroso e permeável, o que vem me provocando um repensar profundo de conceitos e comportamentos. Parte desse processo está descrito no meu blog onde descrevo a minha jornada. Assistir à apresentação do Bernardo evidenciou que o maior impacto na minha identidade como homem veio do fato de ser pai de um filho homossexual, que viveu tudo que ele descreveu na apresentação.
Cabe dizer que tenho plena consciência de que meu “lugar de fala” está muito distante para falar de homofobia, masculinidade tóxica e preconceito. Eu sou um homem branco, heterossexual, nunca sofri discriminação pela minha sexualidade e nunca me senti privado de amizades, oportunidades profissionais ou direitos civis por conta disso.
Estes são temas atuais, muito sensíveis e abertamente discutidos na internet por gente que vive ou viveu tais experiências, como meu filho.
Meu propósito com esse artigo foi apenas compartilhar vivências pessoais e divulgar o excelente conteúdo do Ted citado.
Para evitar falsos entendimentos, esclareço que as histórias que contei dos legumes e do boné não são casos de “masculinidade tóxica”, mas foram histórias pessoais que me introduziram no tema diversidade e que me estimularam para observar mais sobre diferenças e preconceitos. Foram momentos de descoberta e reflexão. A história dos legumes é um exemplo de inocência, empatia e interesse pelo que é “diverso” ou “diferente”. O caso do boné não chega a ser um caso de “preconceito”, foi apenas um episódio de troça e intimidação entre amigos.
O TED foi liberado no YouTube e está abaixo. São apenas 10 minutos de uma apresentação forte. É um tapa na cara. Estou certo que fará você pensar.
O TED disparou dentro de mim um desejo de conhecer e estudar mais o tema. A seguir faço um resumo do que aprendi e achei mais significativo.
Uma matéria na Você SA cita que a Associação Norte Americana de Psicologia estima que 80% dos homens nos EUA sofrem de “alexitimia”, uma característica que dificulta identificar ou expressar os seus próprios sentimentos. Muitas vezes essa dificuldade em conseguir expressar o que sente, ou até mesmo a questão de ter que provar a própria masculinidade a todo custo, leva muitos homens a fugir do controle, partindo para a agressividade verbal ou violência física. Tal cultura faz com que esses homens tenham dificuldade em lidar com as emoções e em falar sobre os seus sentimentos. Esses padrões de comportamento envenenam os homens e suas relações pessoais e profissionais, pois reforçam a ideia de que eles precisam ser duros, agressivos, autossuficientes, competitivos, devem resolver os seus problemas sozinhos, ser o provedor principal da casa e devem ter as mulheres sob controle.
A Disney-Pixar lançou em 2019 um curta-metragem de 8 minutos que explora a masculinidade tóxica no trabalho. O filme conta a história do primeiro dia de trabalho de um personagem inusitado, um novelo de lã. Mas eu não vou contar a história, o melhor é você mesmo ver o filme que está logo a seguir (se desejar, configure para legendas com tradução automática para português). Recomendo também a leitura do excelente artigo “Purl: curta da Disney-Pixar discute masculinidade tóxica” no site Lunetas que apresenta um belo resumo e análise do curto-metragem.
Aproveita o embalo e leia alguns dos 14 conteúdos selecionados pelo Lunetas sobre masculinidade. Vale muito a pena porque os conteúdos balançam a nossa cabeça.
Em 2019, o “Papo de Homem” lançou o documentário “O silêncio dos homens”. Esse filme tem o tema “masculinidade tóxica” como ponto central da narrativa, mas ele vai além, abordando as dores, a opressão emocional, a formação do caráter e a sensibilidade masculina. O documentário é parte de um projeto que ouviu mais de 40 mil pessoas a respeito da masculinidade. As histórias contadas são reais e impactantes. Três anos antes, eles já haviam lançado um primeiro documentário com dados impactantes a partir da pesquisa com 20 mil pessoas, como a descoberta de que 7 em cada 10 homens não falam sobre seus maiores medos e dúvidas com os amigos.
Segundo o “Papo de Homem”, atualmente, 83% das mortes por homicídios e acidentes no Brasil são de homens. Vivemos 7 anos a menos que as mulheres e nos suicidamos quase 4 vezes mais. 17% de nós lida com algum nível de dependência alcoólica. Quando sofremos um abuso sexual, demoramos em média 20 anos até contar isso pra alguém. Cerca de 30% enfrentam ejaculação precoce ou disfunção erétil. Homens são 95% da população prisional no Brasil, sendo que a maior parte dos encarcerados são jovens, periféricos e com ausência de figura paterna. Negros e LGBTs sentem muito mais boa parte disso. Os homens sofrem, mas sofrem calados e sozinhos. Este é um trecho reproduzido de um excelente artigo publicado no “Papo de Homem” que merece ser lido.
A seguir você encontra o documentário “O silêncio dos homens” na íntegra.
Que tipo de homens formamos quando oferecemos aos meninos uma educação que não ensina a chorar, ser sensível ou demonstrar vulnerabilidades? Essa é a pergunta base por trás do documentário, que demonstra os impactos causados sobre a identidade dos homens a partir da educação pautada em desigualdade de gênero.
Segundo o relatório Global Gender Report 2021, do Fórum Econômico Mundial, a igualdade de gênero só será alcançada mundialmente daqui a 135 anos a partir de 2021. Enquanto esse momento não chega, tratemos de fomentar o debate, escancarar as feridas e mudar um pouquinho a cada dia, uns aos outros.