Essa história é real, apenas troquei o nome da pessoa.
Roberto era filho do diretor da empresa. Após se formar na universidade, conseguiu uma vaga dentro da mesma empresa do pai, na área de Compras. Não era exatamente o que ele desejava, mas era a vaga disponível. E se planejou para mudar de área mais para frente.
Em apenas dois anos, o garoto se tornou o melhor comprador da empresa: criativo, comprometido, arrojado, eficiente e produtivo. Já no segundo ano, Roberto sinalizou, em algumas conversas com o seu gerente, de que gostaria de mudar de área para evoluir em seu plano de carreira. No terceiro ano, Roberto já se mostrava impaciente pela falta de qualquer perspectiva real de mudança. Nessa mesma época, a empresa promoveu Roberto, ainda dentro de Compras, mas não era o que ele buscava. No quarto ano, ele pediu demissão e foi cuidar da vida. Poucos anos depois, Roberto já tinha uma empresa, tocando seu próprio negócio.
Olhando pelo retrovisor, Roberto foi fruto de uma cultura perversa existente nas organizações. Ironicamente, ele não conseguiu sair de Compras porque Compras não desejava perder o seu melhor profissional, com potencial até para ser executivo líder da área no futuro. Por outro lado, a empresa olhava Roberto apenas como “profissional de Compras”, nada além disso. Havia até um certo e injusto descrédito pelo fato de Roberto ser profissional de Compras e não de outras áreas com mais exposição dentro da empresa, como Finanças, Comercial e Marketing. Tudo isso parece não fazer sentido, mas esse caso é verdadeiro e curiosamente muito comum nas organizações.
Dois fenômenos acontecem no mundo do trabalho que parecem nos amarrar e limitar nossos horizontes.
Quando entramos em uma empresa, ocupando um determinado cargo, parece que recebemos um carimbo, uma espécie de marca que nos identifica como um profissional de determinada profissão e/ou de determinada área – e essa marca cria muitas vezes uma enorme dificuldade para uma mudança de atuação dentro da empresa. Parece uma bola de ferro presa em nossa perna.
As estruturas da empresa não conseguem ver o potencial, capacidades, habilidades e aspirações dos profissionais em uma possível mudança de função ou área de atuação.
Algumas vezes a empresa até vê, mas não abre caminhos e nem cria incentivos para que a mudança efetivamente aconteça. Esse foi o caso do Roberto.
Por outro lado, nós, profissionais, também colocamos camisas de força em nós mesmos.
A maioria de nós se auto avalia como profissional de tal área, nos associando e nos juntando a profissionais da mesma espécie, reforçando ainda mais a comunidade e as cercanias da profissão.
Este "comportamento manada" nem sempre expande os nossos horizontes, na verdade exerce direção contrária, nos limitando escopo e não permitindo abrir as asas para alcançar outras paragens. Nesse caso, o limitante somos nós mesmos.
Tudo isso me lembra aquele sabonete velho, que vamos usando até o final, juntando partes de outros sabonetes. Queremos tirar o máximo dele. Ele vai se despedaçando, mas a gente vai amassando e forçando a barra para tirar mais dele, tentando que ele ensaboe do mesmo jeito quando estava novo.
A metáfora do sabonete é exatamente o que acontece com a nossa profissão.
A gente vai forçando a barra para tirar mais de nós mesmos. Vamos acumulando experiências e conhecimento, porém temos grande dificuldade de fazermos diferente, de pularmos fora de um barco para entrar em outro barco. Vamos anexando novas habilidades, somando ao que já temos, juntando as competências, porém sempre ao redor da mesma essência. Vamos nos tornando sabonetes amassados, mais experientes, mas fazendo as mesmas coisas que sempre fizemos. Curiosamente o contexto das empresas reforça esse cenário, criando fronteiras, as vezes invisíveis, entre profissões e pessoas. Ficamos entrincheirados. Tudo isso é muito negativo.
Olhando a minha praia, que é marketing e comunicação, isso fica bem evidente. Dentro de marketing nós subcategorizamos os profissionais em publicidade, relações públicas, marketing digital, marketing de performance, estratégia, mídia, inteligência de mercado e dezenas de outras subcategorias. Podemos também segmentar por perfil de empregador: tem os profissionais de marketing e comunicação das agências, das empresas, de consultorias, dos anunciantes, dos veículos, etc. Podemos ir mais fundo e subsegmentar dentro do segmento agências: agências de publicidade, de comunicação, de marketing digital, etc. Enfim, é possível criar dezenas de subdivisões apenas para os profissionais de marketing e comunicação.
Tudo isso funciona como carimbos que colocamos nas pessoas.
Já ouvi líderes de empresas falarem que evitam contratar profissionais de marketing de agências alegando que eles teriam dificuldade para se adaptar aos processos e controles rigorosos existentes dentro de grandes empresas… o que é uma bobagem. Por outro lado, também já ouvi líderes de agências falarem que não contratam profissionais de marketing de anunciantes pois eles não teriam o nível de criatividade, inovação e autonomia que eles buscam. Isso é outra baboseira. Tudo isso me soa mais do que barreiras invisíveis, me parece preconceito.
Trabalhei com profissionais de todas as formações e experiências. Um dos profissionais que mais admiro já trabalhou em agências, em anunciantes, já teve um negócio próprio que não deu muito certo e outras desventuras. Esse conjunto de experiências e capacidades transformou esse meu colega em um profissional único, fazendo dele um profissional diferenciado em termos de conhecimento, performance potencial.
Atualização do artigo: Avaliando a minha própria história profissional, vejo que passei por importantes transformações de carreira, com múltiplas formações e experiências, me trazendo qualificações bem diferenciadas quando colocadas em conjunto. Olhar o retrovisor é interessante. Em jan/2024 escrevi um longo artigo contando, em detalhes, a minha história profissional no artigo "Transição de carreira: a coragem de mudar", onde também faço reflexões sobre "mudar de carreira" e apresento muitas referências relevantes.
Seja o CEO da sua própria carreira
Para ir além do mundo de marketing e comunicação, sugiro a leitura do artigo assinado pelo presidente da CNI, Robson Braga de Andrade, publicado no jornal Valor, sobre a transformação do mundo do trabalho. Ele afirma que o elemento essencial para o desenvolvimento profissional será a formação interdisciplinar. E, independentemente do segmento, os trabalhadores devem conferir uma maior importância a competências socioemocionais, como a capacidade de colaborar em equipe, a criatividade e o empreendedorismo. Veja o trecho do artigo que reproduzo a seguir:
“A formação será, cada vez mais, interdisciplinar. Um químico, por exemplo, terá que adquirir noções básicas em nanotecnologia e em sistemas digitais, bem como ter pensamento crítico, adaptabilidade, flexibilidade e atenção a detalhes. Já um operador de processamento de grãos, na área de alimentos e bebidas, precisará de conhecimentos em automação de controle e processos, e em aplicativos, além de ter boa comunicação, saber gerir bem o tempo e aprender de forma ativa”.
Ao lermos o parágrafo acima, fica evidente a transformação das profissões.
Cada vez mais não fará sentido continuarmos a carimbar as profissões como fazemos hoje. Estamos diante de novos profissionais híbridos, combinando habilidades técnicas e emocionais, com necessidade de aprimoramento contínuo e completamente abertos a novos caminhos de carreira. Carimba-los com os carimbos de hoje é extremamente limitante, frustrante e injusto.
O fato é que a maioria das empresas e instituições ainda se organizam da mesma forma que na Revolução Industrial, segmentando-se todos da mesma forma: por RH, Finanças, Marketing, Jurídico, Fabricação, Pesquisa, etc.
Será que ainda fará sentido convivermos com esse modelo de estrutura na próxima década? Não tenho a resposta para a “estrutura do futuro”, mas estou certo que o modelo atual impõe barreiras enormes para a célula mais importante, que é o profissional do trabalho, que quer voar e não consegue.
Se as organizações e empresas não conseguem estabelecer meios para acelerar a transformação das profissões, cabe então aos indivíduos tomarem a iniciativa e se movimentarem. Aqui estou falando de cada um de nós cuidando da própria vida profissional – afinal, cada um de nós é o CEO da própria carreira.
Não devemos delegar o nosso futuro profissional para a organização onde trabalhamos ou que nos emprega. O futuro de cada um tem que ser moldado pelas nossas decisões e pela nossa capacidade de mudar a direção dos ventos. Precisamos reaprender a olhar.
Portanto, não crie limitações para você mesmo.
Pense em se tornar um profissional combinado de especialidades e capacidades diversas. Crie condições com isso. Tome suas decisões desvinculando-se de entregar tal responsabilidade ao seu empregador, do ambiente em que trabalha hoje. Imagine como será sua profissão atual nos próximos anos, no que você precisa desenvolver para se diferenciar e verá que sua profissão caminha para ser uma combinação de diversas profissões diferentes. Todos caminhamos para isso.
Procure se aproximar de amigos e colegas que estão conseguindo se transformar. Junte-se a eles. Tire o carimbo que existe em você. Ou ganhe carimbos adicionais. Seja um multiprofissional. Em algum momento as empresas reconhecerão que estamos indo para cenário de profissionais multiqualificados, que podem navegar com desenvoltura em diferentes área e níveis da empresa. Esteja preparado para isso.