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Cartas para Regina



Há mais de um ano, exatamente no dia 20 de março de 2019, eu estava em casa, trabalhando em home office e participando de uma videoconferência de trabalho no final da tarde. Era uma reunião muito difícil e tensa. Estávamos há quase duas horas em reunião e eu já estava esgotado mentalmente. De repente, a Regina entrou de surpresa no escritório trazendo uma xícara de café com leite. Fugindo do alcance da câmera do computador, ela me estendeu a mão, me entregou a xícara lançando um beijo no ar e sorriu. Ela não precisou dizer nada, bastou o olhar, conversamos por pensamento. Ela saiu em passos lentos do escritório, sem olhar para trás, não tendo ideia do quanto aquele gesto iria iniciar uma mudança na minha vida.


Acompanhei o seu movimento, vi a porta do escritório se fechar, enquanto mantinha o meu olhar fixo naquela direção e pensei: “Essa mulher me ama mesmo. Ela está muito doente, mas está cuidando de mim, de forma espontânea, com amor e carinho. Quanto tempo vai durar tudo isso? Quanto tempo ela ainda terá de vida? Como tornar esse momento perene? Como retribuir? Preciso fazer alguma coisa”.


Naquele momento, a minha cabeça voava distante da videoconferência, que continuava. Eu estava emocionado, com lágrimas nos olhos, segurando a xícara e estático diante da tela. Quando tomei consciência e voltei à reunião, eu constatei que aquele momento de trabalho não tinha significância para a minha vida. Na verdade, o importante estava naquele ato efêmero do café com leite.


Foi nesse dia que a direção da minha vida começou a mudar.


Inconscientemente, a minha cabeça tomou decisões que se tornaram em fatos mais tarde. Ali eu passei a pensar insanamente no propósito da minha vida e no que ausência da Regina significaria para mim. Passei a pensar, em todos os minutos, em como transformar os meus momentos de vida com ela em momentos eternos, de forma genuína, com atenção e dedicação plena a ela, entregando o melhor de mim para a minha amada.


Minha cabeça pegou fogo. De alguma forma, eu já pensava nisso tudo, mas a partir dali eu comecei a transformar o pensamento em atitudes.


Ao voltar para a videoconferência, eu fiquei olhando para as pessoas, muitas delas pessoas queridas, competentes e amáveis. Eu escutava as discussões, certamente importantes, mas minha cabeça estava em outra.


Naquele instante, pela primeira vez, pensei que eu deveria sair do emprego. Eu não sabia quanto tempo a Regina ainda viveria, tudo era muito incerto, mas eu estava convencido de que precisava me dedicar a ela o máximo possível. Certamente havia questões de aspecto financeiro, seguro médico etc. Mas, dentro de mim, a decisão estava tomada. Era apenas uma questão de tempo.


Desde daquele dia eu passei a trabalhar mais frequentemente em home-office, indo poucas vezes fisicamente ao trabalho. Não senti dor e arrependimento por estar me afastando dos meus colegas de trabalho, por perder produtividade e por prejudicar a minha carreira profissional.


A xícara de café com leite também me fez concluir que os meus planos individuais e profissionais não tinham nenhuma importância. Tudo poderia esperar e até ser esquecido. Agora era o momento dela. Estava convencido a dedicar cada minuto da minha vida para a minha amada, independentemente do tempo que ainda teríamos pela frente. Todos os dias futuros seriam dela, seriam para ela, de forma integral, com compaixão, amor, doação, resiliência, alegria e esperança. Essas palavras ecoavam na minha cabeça. Ao tomar essa decisão, eu senti uma imensa paz interior, me senti leve, com a certeza que estava tomando a decisão mais acertada da minha vida.


A partir daí tudo ficou mais fácil porque todas as atitudes passaram a ser voltadas para Regina. Não surgiam mais dúvidas do que fazer diante das situações. Eu simplesmente esqueci o Mauro, tudo era Regina, tudo era para ela, para estar perto dela, para transformar o seu dia em um dia de paz, de conforto, de felicidade e de esperança. Quem convivia conosco sentia isso. Lembrar disso me gera uma imensa sensação de bem estar, porque me permitiu viver de forma intensa e genuína com a minha amada, onde falamos abertamente sobre tudo, não nos esquivando das conversas mais espinhosas, com transparência e honestidade, não deixando nada por fazer, tudo foi falado antes dela partir.


Naquele mesmo dia da xícara de café com leite, algo dentro de mim me dizia que eu precisava encontrar uma forma para lidar com as minhas ansiedades e inquietudes.


O impulso que surgiu na minha cabeça foi escrever. Foi institivo. Coloquei um caderno amarelo na minha frente e comecei a escrever o que se passava na minha mente. Ainda não era um diário, mas um registro de pensamentos. Foi assim que começaram as cartas para Regina. Mas não comecei propriamente escrevendo cartas para ela, e nem precisava, porque ela estava ainda do meu lado. Comecei a escrever devaneios, desabafos, tristezas, esperanças, fatos, uma miríade de coisas que pulavam na minha cabeça inquieta.


A primeira anotação no caderno diz assim:

20/03/2019 – Ela entrou no escritório e veio trazendo uma xícara de café com leite, para mim, de surpresa.


Ao longo do tempo, escrever no caderno passou a ser uma forma de registrar minhas angústias e esperanças, retratando fielmente uma mente atormentada, polarizada entre a tristeza profunda e a benção de ter a minha amada viva do meu lado, sorrindo, trabalhando e esperançosa.


O caderno funcionava como uma catarse, uma forma de falar com Deus, de desabafar, além de instantes de muita reflexão.

A Regina nunca abriu esse caderno, mas ela sabia que havia algo ali.


Escrever no caderno não era algo frequente, mas uma atividade irregular e aleatória, muitas vezes acontecendo ao longo das sessões de quimio e internações, outras vezes na rotina diária e em momentos de relax.


Escrever no caderno só se tornou algo regular no início de 2020.


Após a partida da Regina, em 28 de fevereiro de 2020, os devaneios se transformaram em cartas para ela. Passei a sentir uma enorme necessidade de conversar frequentemente com ela, de compartilhar a montanha-russa de sentimentos que eu estava vivendo, a minha saudade, de trazer paz de espírito para mim, já que vivia uma fase de desesperança e falta de propósito de vida.


As cartas mostram a intimidade de um processo de luto repleto de altos e baixos, de um coração destroçado, de alguém que ainda atravessa uma caverna em busca de luz. E isso efetivamente está acontecendo, a cada dia surgem mais pontos de luz, iluminando o meu caminho e gerando expectativa para uma vida que ainda vale a pena. Hoje eu continuo escrevendo, mas não mais diariamente. Estou me forçando a sair da armadilha que eu mesmo criei para mim.



As quase 600 páginas, nos 3 cadernos, registram a minha experiência, denunciando as angústias, as dores e os embates mentais por conta da morte eminente da pessoa amada, o depois da morte, o luto e todos os sentimentos ao redor disso. Mas os cadernos evidenciam também a beleza da vida humana, o amor, a esperança, a espiritualidade, a compaixão e a cumplicidade de duas pessoas que se completavam, e ainda se completam.

Escrever recorrentemente tem me provocado um revolver sem fim da minha mente. Na verdade é mais do que varrer, é a capacidade de explorar, identificar medos e fantasmas, desafia-los, encontrar caminhos, desabafar, sonhar, chorar e construir pontes de esperança para a minha vida atravessar. Mas o mais importante é que as cartas para Regina estão me ajudando a colocar as coisas emocionalmente nos lugares certos, arrumar as lembranças do que vivi e senti, descobrir gatilhos mentais e entender os sentimentos. Isso sossega a alma, permitindo que a superação se torne mais fácil, alcançável e possível.


Ironicamente, eu não tenho coragem para ler o que está escrito nos cadernos. Cada página é uma viagem no tempo, que provoca um mergulho abissal na minha mente, me levando para lugares que não sei se vale a pena serem tocados. Cada página mostra um Mauro que passou, não é o Mauro atual, que se transforma no dia a dia. Eu preciso olhar para frente. Tudo ainda está muito sensível, parece aquele rio que, quando do pisamos no fundo, a areia levanta e transforma o rio limpo em um rio turvo. Quem sabe no futuro eu abra os cadernos?

Talvez esteja na hora de terminar com as cartas para a Regina. Deixarei de escrever (ainda não sei quando), mas continuarei conversando com ela todos os dias, em espírito e pensamento. Acho que está na hora de um novo caderno: o meu caderno. Um caderno para minha nova vida, repleto de folhas brancas, limpas, prontas para serem preenchidas, rabiscadas, rasuradas, como tem que ser, registrando um futuro de novas experiências, de idas e vindas, de aprendizado e conquistas. Um caderno desse tem que ser bastante bagunçado, mostrando que a vida não tem um caminho único. Minha única certeza é a cor da capa. Tem que ser verde, que é a cor da esperança.


Em Paraty

Esse post está sendo publicado no dia 21 de setembro de 2020, que é um dia muito especial para nós.


Nessa data, nós celebramos 35 anos de casamento. É o nosso dia! Eu e Regina nos conhecemos quando ela tinha 10 anos de idade, e eu 13 anos. Namoramos por 5 anos. É muito tempo junto. Estou nesse momento em Paraty, a cidade que me foi apresentada por ela e que nós amávamos. Vivemos lindos momentos aqui. A minha saudade agora é gigante.


Hoje é dia de escrever uma carta para ela, falar com ela, mandar beijos e declaração de amor eterno, falar que estou bem, em paz, de bem com o mundo, vivendo a vida como combinamos. Farei isso acompanhado de uma xícara de café com leite… em Paraty.


A xícara que fiz em homenagem a Regina

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