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Carta para Eduardo. Ou: Como superei o luto



Talvez o post-comentário que publiquei fosse suficiente. Talvez uma mensagem de whatsApp funcionasse bem. O fato é que o post do LinkedIn publicado por Eduardo Halpern balançou as coisas dentro de mim, me fez voltar momentaneamente no tempo e gerou uma enorme vontade de conversar com ele.


Isso não aconteceu apenas comigo, já que a publicação do Eduardo gerou grande engajamento na rede. Foram dezenas de milhares de pessoas lendo e dando like no post, escrevendo comentários. Eu também fiquei emocionado. A sensibilidade e as palavras de Eduardo afloraram sentimentos e lembranças dentro de minha mente. Eu escrevi um longo comentário-resposta para ele no campo de comentários do post no próprio LinkedIn, mas ainda muito pequeno diante de tudo que eu gostaria de falar.


Abaixo transcrevo o post do Eduardo. E, logo em seguida, reescrevo a minha resposta agregando mais conteúdo, tornando-a mais ampla e completa, somando referências, já que aqui não fico limitado ao espaço que o LinkedIn oferece.


Eis abaixo o sensível e emocionante texto de Eduardo Halpern publicado em 09/07/2022 no LinkedIn:


Hoje eu e a Roberta teríamos completado 21 anos de casados. Ela teria feito 42 anos de idade em março. Em outubro terão passado três anos da sua partida.

A impressão que tenho é que a vida está voltando ao normal. É uma sensação estranha depois de cinco anos acompanhando a luta dela contra o câncer e de quase três anos suportando a sua perda.

A gente se acostuma a estar sempre enfrentando situações muito difíceis e elas começam a parecer normais: exames, consultas, internações, sessões de quimioterapia, brigas com planos de saúde, contratação de advogados…

Depois, a gente se acostuma a ficar tratando as feridas da perda. Parece que estar preocupado, cansado, frustrado é o estado normal da nossa vida!

Nos últimos meses, venho fazendo um esforço consciente para viver melhor. Tenho viajado mais, conhecido novos lugares, feito mais atividades físicas, lido mais livros e tentado passar mais tempo com meus filhos, meus pais e meus amigos.

Tudo isso tem me feito bem. Uma despressurização…

PS: Às vezes, bate uma culpa. Como se fazer coisas divertidas e prazerosas fosse uma demonstração de falta de carinho com a Roberta, depois de tudo que a gente passou. Já me explicaram que isso teria o nome de síndrome do sobrevivente.


 

Eis a minha carta para Eduardo:


Querido Eduardo.


Eu consigo entender e sentir cada uma de suas palavras em seu post. Cada palavra mesmo! Ler seu texto me fez viajar no tempo e relembrar determinadas coisas. Tudo em fração de segundos.


Nos primeiros meses, após a partida da Regina, eu também senti muita culpa por buscar alegria em momentos triviais da vida, por sorrir, por me permitir ficar leve e por fazer coisas divertidas e prazerosas. Você disse que isso se chama “síndrome do sobrevivente”. Eu não conhecia esse termo, mas me pareceu fazer muito sentido. Pesquisei na internet para entender um pouco mais e me deparei com um texto interessante chamado “Síndrome do sobrevivente: a culpa de continuar existindo”. Então descobri que tal síndrome é desencadeada e sustentada pela culpa.

Eu não tive um modo estruturado e mágico para tratar a tal “síndrome do sobrevivente” que estava enfrentando, até porque eu não conseguia elaborar ou ter plena consciência do que sentia e vivia naquela fase. Ao reler os posts em meu blog, que publiquei naquela época, isto fica bem evidente. No entanto, intuitivamente, eu me enveredei por um caminho dentro da minha mente que me permitiu encontrar uma saída.


Acho que entrei em um estado maior de consciência a partir da busca insaciável de respostas para duas perguntas que bombardeavam a minha cabeça.


A primeira pergunta era: o que é o luto? Como ele funciona dentro das pessoas? E como ele funciona dentro de mim?


Eu precisava entender melhor o sentimento de perda, o momento que eu estava vivendo, as armadilhas mentais, como o processo de luto impacta a maioria das pessoas e como estaria funcionando no meu caso. Então comecei a ler tudo sobre lutos e perdas, ouvir podcasts e procurar conhecer experiências de pessoas que passaram por isso. Tal iniciativa abriu a minha cabeça. Comecei a entender as fases do luto, o que ele causa nas pessoas, como ele evolui, possíveis desdobramentos e as possíveis alternativas para acelerar esse processo. Ao longo do tempo eu fui ficando mais forte mentalmente e conscientemente. Eu escrevi posts no meu blog dando referências de conteúdo que me foram muito úteis.

A segunda pergunta era bem mais complexa: O que é a morte? Para onde a Regina foi? Onde a Regina estaria naquele momento?


Eu procuro por respostas até hoje, mas encontrei indícios de respostas… e boas respostas! As respostas para essas perguntas não são binárias, não são racionais e, muito menos, simples. Tais respostas, obrigatoriamente, precisam ser elaboradas a partir das minhas crenças, da minha fé e do meu espírito. Ou seja, a chave para estas questões está no meu ser espiritual.


A minha caminhada na busca do meu desenvolvimento espiritual começou há cinco anos, na fase da descoberta da doença da Regina. Neste tempo, eu me desenvolvi muito e aprendi que a morte é apenas uma passagem para outras vidas.


O desenvolvimento espiritual é individual, uma jornada íntima, algo muito pessoal e singular, que cada ser humano tem que trilhar por conta própria.


Nos primeiros meses da partida da Regina eu desenvolvi a convicção de que ela havia partido, porém ela não havia morrido dentro de mim. Para onde quer que ela tenha ido, não importa, ela foi para um lugar melhor, está bem espiritualmente e em paz depois de tudo que passou nos últimos anos de sua vida terrena. Por outro lado, a Regina também está e estará sempre dentro de mim. Eu não existo mais sozinho! A Regina me forjou no ser humano que sou hoje, portanto eu não sou mais o Mauro, eu sou o Mauro mais a Regina.


Ao me convencer de que a Regina estava dentro de mim, espiritualmente, eu passei a sentir um incômodo. É difícil descrever o que eu sentia, mas é como se ela estivesse do meu lado cochichando no meu ouvido, o tempo todo. Era tão nítido e claro que consigo reproduzir aqui o que ela me falava todos os dias. Era algo mais ou menos assim: “Deixa de ser bobo. Deixa de ficar chorando pelos cantos como bebezinho. Você está livre agora. Você nunca esteve tão bem fisicamente, tem uma saúde de ferro, uma cabeça maravilhosa, é um cara de bem, conseguiu juntar um dinheiro e por isso não precisa se preocupar com emprego agora. Depois você pensa na sua volta ao trabalho. Vai viver! Vai curtir a vida! Vai construir uma nova vida! Vai fazer as coisas que você nunca faria se ainda estivesse ao meu lado. Vai viajar pelo mundo. Você pode viver como quiser, onde quiser, com quem quiser e do jeito que quiser. Você ganhou a liberdade! Vai fazer coisas que você nunca faria se eu estivesse do seu lado. Aproveite a liberdade e não se preocupe comigo. Eu estou dentro de você e nós vamos fazer isso tudo juntos. Se você não fizer isso por você, pelo menos faça por mim. Me leve para passear”.


A frase “me leve para passear” ficava ecoando na minha cabeça. Eu olhava as fotos antigas da minha vida com a Regina e a frase se repetia indefinidamente na minha cabeça.


Esse cochicho da Regina surgiu suave no início, mas depois foi ficando mais alto, deixando de ser um sussurro para virar uma ordem. Depois de dois meses eu não aguentava mais aquele incômodo dentro de mim.


Outras coisas aconteceram que aumentaram ainda mais o meu despertar. Então parti para cumprir a missão que eu havia recebido da própria Regina: me ressignificar como ser humano, descobrir um Mauro que eu não conhecia, conhecer pessoas novas, lugares novos, viver experiências completamente diferentes, transformar o meu presente e o meu futuro nas fases mais maravilhosas da minha vida, estar consciente de que a vida não é ficar olhando para trás e sim para frente, entender que o passado é uma espécie de retrovisor, que você olha de vez em quando, mas o que vale mesmo é olhar para frente.


Eu ainda estou nesta minha viagem, que parece ser longa e interminável. A maior dificuldade foi dar os primeiros passos, escolher a direção e ter determinação. Para isso eu não fechei o meu coração e nem a minha cabeça. Na verdade, eu fiz o contrário, eu iniciei a caminhada de peito aberto, procurando derrubar os meus conceitos e preconceitos, entrando em coisas que eu não tinha gosto ou interesse, me forçando a ir para direções não tradicionais, porque eu entendia que esta seria uma forma de permitir me testar e me redescobrir com ser humano. Assim estou hoje.


Da maneira que escrevo pode parecer fácil, mas está longe de ser fácil. Parece ser mais confortável aceitar a dor. Parece ser mais fácil atender as expectativas de quem está ao nosso redor, que muitas vezes de forma inconsciente, clama por nossa lamentação e melancolia eternas. Quando vivemos um luto, tudo parece conspirar para que entremos em um loop que nos encarcera no conceito de que somos vítimas do destino, que fomos selecionados por alguma entidade divina para sofrer.


Quando conheci a lenda dos dois lobos, parece que aconteceu um estalo e tudo ficou mais claro. Já escrevi muito sobre isso, porém destaco o artigo “Os lobos dentro de mim” onde conto esta história em detalhes. Foi neste momento que descobri que eu poderia ter controle da minha consciência, das minhas escolhas e decisões. Tudo dependia do espaço e voz que eu queria dar para cada lobo que me habita. Isso mudou completamente a direção da minha vida naquela época. Eu passei a ter controle do leme das velas do barco da minha existência. Isso foi transformador e continua sendo até hoje. Quando passo por algum problema, logo vem o pensamento: “Calma Mauro, você está no comando. A decisão de como vai reagir a esta situação é exclusivamente sua”.


O tempo foi passando e coisas começaram a acontecer. Quando você se abre, quando recebe e emite luz, quando vive intensamente o presente, quando acredita no poder do pensamento positivo, quando acredita que você não é vítima e sim dono do seu destino a partir de suas escolhas, então coisas incríveis e inesperadas começam a acontecer. Foi isso o que ocorreu comigo.


No final do ano de 2020 surgiu um novo grande amor na minha vida. As estrelas se alinharam no céu e colocaram uma pessoa maravilhosa na minha frente. Eu não queria e nem estava procurando por uma nova companheira na minha vida. A Valéria muito menos. Mas o amor é imprevisível e improvável. Ele simplesmente aparece, invade as nossas vidas, ocupa espaço, cria amarras e nos transforma. Eu e Valéria não estamos vivendo um flerte ou uma aventura. Existe algo muito forte que nos une, até porque somos maduros e sabemos compreender os sentimentos que vivem dentro da gente.


Engana-se quem pensa que, ao me apaixonar pela Valéria, eu esqueci da Regina. As coisas não funcionam assim. A Regina está presente no meu relacionamento com a Valéria, porque a vida, a morte e o amor da Regina fizeram de mim a pessoa com quem a Valéria se apaixonou e está se relacionando. Eu não deixei a Regina para trás porque ela sempre será parte da minha existência. O fato é que dois mundos se desenrolam ao mesmo tempo dentro de mim. A Regina é passado. A Valéria é o presente e o futuro.


O meu amor pela Regina e o meu amor pela Valeria não são excludentes, muito menos são sentimentos opostos. Eles caminham juntos porque Valéria e Regina fazem parte da mesma trama, da mesma teia, do mesmo livro. As páginas viram, os capítulos mudam, mas o livro é o mesmo… o livro da minha vida! Páginas não podem ser apagadas, muito menos arrancadas. Apenas novas páginas se somam ao meu livro.


Valéria tem sido uma companheira fundamental no meu caminho de transformação. Ela potencializou ao máximo a minha ressignificação. Ela é o despertar do que existe de melhor dentro de mim, é a evidência de que o amor se renova e que a vida é maravilhosa. Com ela me sinto protegido e abraçado, me sinto um ser humano melhor e mais pleno. Com ela, a vida faz sentido e vejo um horizonte de possibilidades infinitas. O que sinto é um amor profundo e verdadeiro. A minha maturidade, lucidez e consciência me permitem afirmar que com a Valéria eu estou vivendo a fase mais extraordinária da minha vida.


Isso tudo para mim é muito mágico. Hoje me sinto um ser feliz, em paz e muito mais generoso e amoroso do que antes. Nunca estive tão bem fisicamente, mentalmente e espiritualmente. Sou um ser em evolução a cada dia. Tudo isso só foi possível no momento que eu consegui trazer o passado para dentro de mim, ressignificá-lo, deixando de ser uma mochila que eu carregava nas costas, exposta para todos, para se transformar em algo inserido dentro do meu ser e espírito, algo somente meu. Não sei explicar muito bem tudo isso, realmente é difícil de descrever, mas estou convencido de que forjar um caminho de luz, paz e amor é possível para qualquer um, onde o importante é viver para dentro de si, e não para fora.


Querido Eduardo. Esta é a minha história pessoal. É apenas a minha experiência, sem certezas ou receitas, muito menos poções mágicas. Senti uma vontade enorme de contar tudo isso. O tempo ajuda a arrumar as coisas em nossa mente, montando as peças tal qual um quebra-cabeça.


Seu post me despertou tudo isso. Seu post me fez viajar e refletir, despertando sentimentos, alguns adormecidos de um período que é passado para mim.


Como escrevi antes, eu vivo um novo capítulo no livro da minha vida. Um livro que me dá orgulho de folheá-lo. Um livro em que cada nova página é escrita a partir das escolhas que faço a cada dia. Eu tenho a consciência de que comando a minha vida, o que eu quero e o que eu sinto.


Querido Eduardo. Muito obrigado. Desejo tudo de melhor para você em sua viagem de vida. Muita paz e que seja feliz. Cuide de seus lobos. Você tem um amigo e admirador aqui.


Receba meu afetuoso abraço.


Mauro.


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